Sobrinho de Salomé

1172201919180.jpgTenho me deliciado novamente com as crônicas do Mario de Andrade em Os Filhos da Candinha, o que tem sido uma experiência bem interessante. Alguns dos textos que passaram batidos por mim, agora estão na lista dos favoritos. Um exemplo é ‘Sobrinho de Salomé‘, de 1931, mas que ilustra TÃO bem os erros de interpretação do que é publicado por aí, que terei que colocar aqui no blog, independente de saber que quase ninguém vai ler (e a partir de hoje enviarei para quem interpretar um texto de forma distorcida, hehe)

Estou levantando mais uma vez essa questão porque novamente não entenderam o que o Reinaldo quis escrever em uma matéria publicada no G1. Aliás, acho estranho essa dificuldade de entender os textos do Reinaldo, sendo que um dos pontos fortes da escrita dele é falar das coisas mais complicadas de forma simples, sem nos fazer parecer uns bocós. Mas vamos por partes, primeiro essa má interpretação do texto do Reinaldo.

Na época do lançamento do filme 300, o Reinaldo publicou um texto na editoria de Ciências e Saúde (categoria Arqueologia) traçando um paralelo entre o que é mostrado em 300 e o que acontecia de fato na época na qual a hq e o filme foram inspirados.

Aí vem um rapaz e escreve um post no blog, no qual chama o Reinaldo de “Zé goiaba Reinaldo José Eu-sou-um-mala Lopes“, e destrincha o texto, como se o artigo fosse crítica de cinema. Eu obviamente não linkarei o sujeito aqui, porque apesar de tudo ele está protegido pela liberdade de expressão dele. Mas que agiu como o sobrinho de Salomé, ele agiu.

Para entender o que é agir como o sobrinho de Salomé, leia a crônica do Mario que vem a seguir (e caso você não saiba quem é Salomé, clique e leia isso aqui antes, senão a crônica ficará sem sentido):

Sobrinho de Salomé (Mario de Andrade/1931)

A respeito do sr. general que protestou por Menotti del Picchia ter abusado do nome dele num romance, lembrei de tirar dos meus guardados esta carta que encontrei numa revista alemão e traduzi:

“Sr. Diretor:

Muito me penalizou o estudo “Psicologia de Salomé” publicado no número de agosto da vossa conceituada revista. Eu que sou leitor assíduo dela e conceituado (sic) em nosso comércio, não posso francamente compreender que motivo levou o Sr. e o autor do artigo, que não me conhecem, a me ferir tão profundamente em minha honorabilidade.

O mais provável é ser o referido artigo, fruto da campanha anti-semita que agora principia se desenvolvendo atrás de nós. Mas o Sr. não achará, por acaso, que é a mais clamorosa injustiça culpar uma pessoa do sangue que lhe corre nas veias? Tanto mais sendo essa pessoa tão bom cidadão do Império que deixou no abandono a joalheria herdada, para se sujeitar patrioticamente aos horrores e desperdícios do serviço militar!

Minha tia Salomé não deixou filhos, é verdade, mas eu sou sobrinho dela, único sobrinho, pois minha santa Mãe também não queria filhos. Mas como sobrinho não deixarei sem reconsideração os exageros e mesmo mentiras tão levianamente expostas no referido estudo.

Assim, são positivamente exageradas as afirmações do articulista sobre a liberdade moral de minha tia Salomé. Posso lhe garantir, Sr. Diretor, que ela não foi uma rameira vulgar, nem jamais se deu à conquista de potentados, imperadores e reis, sem que tivesse o mínimo ‘penchant’, o mínimo ‘béguin’ por eles. Não posso contestar que minha tia manteve uma vida bastante liberdosa, tendo mesmo compartilhado leito de vários senhores, sem que santificassem tais convívios as bênçãos de Deus. Mas nunca, oh nunca, Sr. Diretor, ela se deixou levar pela ambição do dinheiro, mas por fatalidades afetivas que nem poderemos chamar de levianas, porque era a própria intensidade prodigiosa desses afetos que provocava rápida caducidade deles.

Eis aí, Sr. Diretor, uma sutileza psicológica que escapou ao psicólogo da vossa revista! A rapidez com que se desfazem e morrem as paixões intensas demais isso é que ele devia estudar, justificando por suas observações a tresloucada vida de minha tia Salomé. E será propriamente ela culpada dos desvarios que praticou, ela, mulher fraca, e não os detestáveis costumes da vossa e minha gloriosa Alemanha?

Não seria este o momento para o articulista profligar a imoralidade em que vive atualmente a nossa alta nobreza (a carta é anterior a 14, bem se vê), imoralidade de que minha tia foi infeliz vítima, imoralidade que certamente conduzirá o nosso país à guerra e à ruína? Não dou dez anos, não haverá mais joalherias nem dinheiro na Alemanha!

E por minha tia ser semita, havemos de prejulgar levianamente que ela se conduziu apenas pela paixão do dinheiro? O vosso articulista, Sr. Diretor, não passa dum psicólogo vulgar.

E que mentiras mais desbragadas, essas a que ele dá curso, afirmando que minha tia dançava nua e tinha instintos sanguinários, pelo complexo do Anti-Édipo! Onde ele ouviu isso! Minha santa Mãe, que foi inseparável de minha tia Salomé e freqüentava as mesmas festas, muitas vezes entre lágrimas, quando papai estava na joalheria, evocava comigo os tempos de dantes e me contava quem foi minha célebre tia.

Pois jamais ela se referiu a essas coisas. Posso lhe garantir, posso mesmo lhe jurar pela memória de minha mãe, que minha tia Salomé não foi bailarina. E como poderia ela dançar, se todos sabiam que ela manquejava um pouquinho desde jovem, devido ao escandaloso incidente de Friedrichstrasse, m que a bala do príncipe W. lhe espatifou o joelho direito?

Minha tia Salomé jamais dançou, e muito menos dançou nua, embora aos seus familiares confessasse muitas vezes ser um dos seus maiores desejos dançar num terraço, ao pálido clarão do luar, uma valsa de Waldteufel.

Quanto ao incidente do príncipe W., instinto sanguinário teve ele que a quis matar. E posso ainda lhe garantir que nunca ela pediu a cabeça do príncipe a ninguém, pois até minha tia confessava constantemente a coincidência estranha de jamais ter se encontrado, em festas íntimas, com o nosso grande Imperador!

A que pediria ela então a cabeça do príncipe? De resto, minha tia não se chamava Salomé! Eis um detalhe psicológico que não escaparia ao vosso articulista, se ele fosse profundo no assunto. Salomé foi nome adotado. O verdadeiro nome da minha tia era Judith.

Esperando, Sr. Diretor, que esta carta tenha o merecido acolhimento de vossa revista, e assim se faça justiça à minha tia já morta, continuo seu admirador estomagado (o termo era intraduzível) e respeitoso,

FRANZ.

4 comentários em “Sobrinho de Salomé”

  1. È difícil comentar sem saber qual foi o comentário que fizeram sobre o artigo (300). Mas o autor parece exagerar um pouco, entendo que ele quis mostrar as “diferenças” do filme com a realidade, só que estamos falando de um filme baseado em quadrinhos e um tempo bastante nebuloso. Alguns pontos que ele faz no texto irritam um pouco.

  2. Fala amigo, voce falou das cronicas do Andrade, confesso que fiquei com uma vontade de le-las. Sera que pode me mandar uma ou dizer onde encontrou ja que nao pretendo comprar o livro apenas para ler uma.
    Abraço

  3. Quando mandei o outro coment nao tinha lido tudo!
    Agora que vi q vc disponibilizou uma cronica!
    Só que agora eu quero ler todas…=/
    pode me informor onde encontrou??
    obrigado de qualquer forma mesmo q nao seja possivel!

  4. Ô, André! Agora você fez valer a pena ter digitado toda a crônica ontem :mrpurple:
    Esse livro com a reunião de crônicas do Mario (chamado Os Filhos da Candinha), você consegue comprar por 25 reais no Submarino -> http://www.submarino.com.br/books_productdetails.asp?Query=ProductPage&ProdTypeId=1&ProdId=29120&franq=102414

    Sério, vale a pena. Tem crônicas lá que são de ficar de queixo caído sobre a atualidade das mesmas. Adoro uma na qual ele descreve um jogo do Brasil contra a Argentina, hehe

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