História do Novo Sobrenome (Elena Ferrante)

ahistoriadonovoATUALIZADO 01/04/2015: Recebi da Editora Globo o História do Novo Sobrenome, tradução de The Story of a New Name sobre o qual comentei aqui em julho do ano passado. Resolvi só trocar as citações em inglês para as em português e deixar alguns comentários pós-releitura para o fim do post para não embaralhar ainda mais meu jeitinho caótico de comentar livros.

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Eu ainda estou esperando aparecer alguém que tenha lido as últimas frases de A Amiga Genial de Elena Ferrante sem ter no mínimo sentido um tanto de esperança de que novas páginas brotassem e aquele não fosse de fato o final do romance. Para quem ainda não leu o primeiro volume da Série Napolitana, talvez isso pareça algo ruim, mas não é. É o sentimento de quem se encantou pela trajetória das personagens e não só quer saber mais sobre elas, mas também saber quais serão os desdobramentos de um momento difícil em que elas se encontram. Tenho certeza que anos passarão e eu ainda lembrarei da cena do casamento, com o macarrão pisoteado pelos garçons, portas abrindo e fechando, risadas forçadas para piadas vulgares – como se estivesse lá, como se fosse uma das convidadas.

E por isso acabou que eu não consegui segurar a curiosidade e esperar a tradução do segundo volume chegar pela Editora Globo, comecei The Story of a New Name. É uma experiência um tanto estranha ler um livro em português e depois sua continuação em inglês (e o pessoal ainda acredita em tradutor que “some” no texto, ahaaam), mas depois dá para reencontrar a “voz” da Lenu e então a leitura engrena e… e agora vem aquele aviso básico de que os comentários a seguir terão spoilers (mesmo que eu ache que a experiência de leitura sobreviva às revelações, de qualquer forma prefiro avisar).

O segundo livro não começa imediatamente do ponto onde parou – o momento em que Lina e Lenu percebem o sapato Cerullo nos pés de Marcello. Lenu avança um pouco na narrativa para um ponto em que, segundo ela, a amizade entre as duas não estava muito bem, mas mesmo assim Lina confia para a amiga uma caixa com cadernos onde fizera diversas anotações sobre tudo o que acontecera em sua vida da infância até aquele momento. A presença dos cadernos é importante porque neste volume Lenu resgata uma série de momentos bastante íntimos de Lina, sobre os quais ela não poderia ter conhecimento mesmo que estivesse presente.

O interessante é que justamente para o desdobramento da chegada de Marcello ao casamento (o que mais atiçou a curiosidade do leitor), ela resolve deixar este recurso de lado. Fala apenas do que presenciou, o que viu: uma Lina obviamente alterada com a presença de Marcello mas que, de alguma forma, toca o barco até o final do casamento sem qualquer escândalo (uma reação típica).

O recurso vem só quando Lenu constata o óbvio, ao afirmar que a partir do momento em que Marcello entra no salão, o destino de Lina e Stefano está decidido: o casamento acabou. Mas quem acompanhou os eventos no primeiro livro sabe que nada é fácil para as mulheres do bairro napolitano onde a história se passa. Lina passa a ser a Senhora Carracci, uma outra pessoa, que pouco lembra a garota de antes do casamento. Apanha do marido, se esconde em casa longe de qualquer coisa intelectualmente estimulante, vive sendo humilhada por ser constantemente lembrada de que suas funções agora são cuidar da casa e parir. Lembrada de que é coisa, uma espécie de moeda nas relações entre os homens da região.

Se já no primeiro livro o pequeno universo do bairro criado por Elena Ferrante já ilustrava bem as dificuldades que as mulheres encontram por conta de uma sociedade extremamente machista, agora é tudo pior, mais forte (e mais triste, é óbvio). O título do livro não é por acaso e não vem só pela transformação na vida de Lina com o novo sobrenome: os sobrenomes marcam as relações de poder. Lina quando consegue escapar do bairro e principalmente da vida com Stefano, volta a ser a Senhora Cerullo. E reassume a identidade com tal força que Enzo (que foge com ela) passa a ser chamado de Senhor Cerullo, e não Senhor Scanno. Com Lenu também há uma passagem que evoca a questão do sobrenome: quando publica o livro como Elena Greco, o pai diz olhando a capa “É meu sobrenome”, e a mãe depois pergunta se ao casar ela publicará outros livros com o novo sobrenome.

E é apenas na fuga de Lila e na publicação do livro de Lenu que a corrente que aparentemente sempre as prende aos homens parece ser rompida. Mas antes disso acontecer, ressurge uma personagem importante sobre essa questão da fuga ainda em A Amiga Genial: Nino Sarratore. A tristeza de Lenu ao perceber que ele era a única pessoa que poderia tirá-la dali será uma semente importante para o que acontecerá em uma boa porção do livro, um verão passado no litoral. É provavelmente o trecho do romance que mais causa sentimentos contraditórios no leitor, principalmente por causa de Lina.

Já sabemos do amor de Lenu por Nino. Sabemos o que ele significa, a possibilidade de sair dali, o amor de infância, a promessa. E por isso compreendemos quando Lenu abandona tudo para passar com Lina o verão na casa alugada por Stefano. E também por isso cada sinal que Nino dá de estar interessado em Lina, não Lenu – e de estar sendo correspondido – é extremamente doloroso. E é fácil julgar Lina pelos atos (ela é casada! Lenu ama Nino! etc) e haha, sociedade machista, né. Quando a gente percebe, está vendo Lina exatamente com os olhos das pessoas do bairro.

É uma jogada bem inteligente de Ferrante, e muito bem desenvolvida, porque esse momento com Nino se aglutina com uma maldade cometida por Lina contra Lenu quando a narradora encontra uma porção de alegria por causa de um grupo de pessoas que conhece. Fica fácil nutrir antipatia pela personagem, esperar que de alguma forma seja punida, porque ela está roubando Nino de Lenu ou a felicidade de Lenu. Porém, vale lembrar que para Lina, Lenu não tinha mais qualquer interesse em Nino há tempos. Não houve uma traição da amizade, houve apenas a entrega total a um sentimento que ela não pensava ser possível.

Compreendi de repente por que não conquistei Nino, por que Lila o conquistou. Eu não era capaz de me entregar a sentimentos verdadeiros. Não sabia me deixar levar além dos limites. Não possuía aquela potência emotiva que levara Lila a fazer de tudo para gozar aquele dia e aquela noite. Me mantinha recuada, à espera. Ela já tomava as coisas para si, as queria de verdade, se apaixonava, ia para o tudo ou nada e não temia o desprezo, o escárnio, as cusparadas, as surras. Ela enfim merecera Nino porque considerava que amá-lo já era tentar conquistá-lo, e não esperar que ele a quisesse.

E foi uma passagem angustiante porque Lenu descreve nos mínimos detalhes tudo o que sente. Vamos acompanhando com seus olhos o amor entre Lina e Nino crescer, ao ponto de enlouquecerem um pelo outro e não ligarem mais para nada. Uma série de conflitos surgirá por conta dessa paixão, mas Lenu de certa forma consegue escapar ilesa – e decide se afastar o máximo possível. Acaba conseguindo uma bolsa de estudos e vai para a faculdade em Pisa.

E aqui vem outra ótima sacada de Elena Ferrante, mais no sentido de mostrar como funciona a relação entre as duas mulheres. Lenu narra seus anos em Pisa com total falta de cuidado, passa rápido pelos eventos como se eles não significassem nada (o que sabemos que não é o caso, quando lá para frente ela mostra sentir muitas saudades de um dos amigos que fizera ali).

Por outro lado, a vida de Lina ela continua descrevendo minunciosamente, das pequenezas das pessoas do bairro contra a amiga, do sofrimento da separação, das humilhações sofridas pela violência de Stefano. Por um momento cheguei a acreditar que esse cuidado era uma forma de reforçar a queda de Lina, quase como uma vingança nas páginas do romance, mas fico com a impressão que Lenu se vê vazia de vida quando a amiga não está por perto. Porque apesar dos atos do período do verão, não tem como não amar Lina, sua força, sua personalidade. Adoro como através de pequenos pedaços de diálogo Lenu consegue construir tão bem a figura da amiga:

“Você me faz uma camomila?”, disse a filha de Melina.

Lila fez.

“O menino é lindo.”

“Sim.”

“Idêntico ao Stefano.”

“Não.”

“Tem os mesmos olhos e a mesma boca.”

“Não.”

Este trecho assim fora do contexto pode não falar muito, mas na hora da leitura fica impossível segurar o riso. Sim, isso é Lina.

E então chega o livro escrito por Lenu no último ano da faculdade, um roman à clef que se concentra principalmente nos eventos daquele verão que a afastara de Lina. Tem algo na presença desta obra que me fez pensar em Budapeste de Chico Buarque, o livro dentro do livro. Porque ainda jovem Lenu publica a história daquele verão, mas agora em idade avançada reconta os eventos daquele período.

E que tristeza que dá perceber a solidão de Lenu em sua felicidade. Não existir alguém que a tenha conhecido no passado e que valorize sua arte para que possa compreender o grande salto que deu, a importância de um Elena Greco estampado na capa do romance. Todas as pessoas que de alguma forma a ajudaram a trilhar aquele caminho agora não estavam mais em sua vida.

Justamente agora que eu estava virando uma escritora não havia ninguém em todo o bairro capaz de dizer: que coisa extraordinária você conseguiu fazer.

Uma delas, a professora Olivieiro, morre e deixa para Lenu uma caixa com os objetos dos tempos de escola. Principalmente cadernos, mas junto com tudo isso “A fada azul”, o livro que Lina tinha escrito na infância, quando as duas planejavam escrever para ficarem ricas. Se em A Amiga Genial houve uma pancada enorme com o casamento (seja por Lenu percebendo que jamais poderia sair dali, seja por Lina percebendo que seu irmão e seu marido a trairam em troca de dinheiro), a pancada de História do Novo Sobrenome vem com uma força ainda maior. Porque Lenu não diz com todas as palavras (fala apenas que o livrinho não estava assinado), mas fica evidente que a professora decide “adotá-la”, incentivando os estudos e garantindo que fosse em frente e chegasse onde estava principalmente porque vira na menina talento, potencial para ser mais, para, enfim, sair daquele lugar.

Mas tinha conseguido imaginar para mim um caminho que minha mãe não era capaz de imaginar e me forçara a trilhá-lo. Por isso eu lhe era agradecida.

A culpa que Lenu sente é que quem tem o potencial é Lina. E mesmo no livro que consegue publicar após a faculdade, reconhece ecos da obra da amiga. No fim, como concluiu, ela roubara algo muito mais precioso de Lina. Ao contrário do que ela pensava, havia saída daquela miséria através do conhecimento, sim. E ela roubara a oportunidade da amiga.

De repente o que eu tinha tirado dela me pareceu muito mais do que ela jamais pôde tirar de mim.

E como já era de se esperar, a conclusão vem com mais um momento “COMO ASSIM, ELENA FERRANTE?” que faz o leitor já querer engatar a leitura do terceiro livro (História de Quem Vai e de Quem Fica). E sim, cada vez mais curiosa sobre o que fez Lina resolver sumir depois de velha.

***

Sobre a releitura, primeiro o ponto principal – sim, a tradução faz toda a diferença. Se você assim como eu não aguentou a curiosidade e leu em inglês (fora o Ary que é loco de chique e leu no original em italiano mesmo, hehe), corre e lê de novo em português. Meu estranhamento inicial ao ler em inglês não foi por nada, a tradução de Maurício Santana Dias está ótima mesmo.

Veja bem: não quero diminuir o trabalho da Ann Goldstein com a versão anglófona. Mas a expressão “lost in translation” não existe à toa. Pelo “parentesco” (ambas línguas latinas), acaba que a tradução para o português consegue captar muito melhor a diferença entre momentos onde a personagem precisa soar rude – o que é essencial, porque é essa é uma característica marcante das pessoas do bairro. Por exemplo, um diálogo entre Lila e Stefano em inglês ficou:

“Why? Have you decided not to screw anymore?”
“Fuck off.”

e em português:

“Por quê? Decidiu não foder mais?”

“Vá tomar no cu.”

Note que é bem mais cru, bem mais vulgar. E se digo que isso é importante é porque a partir do momento que Lenu passa a conviver com os Airota, a distinção entre o bairro e o mundo “intelectual” que ela encontra se apresenta também através da fala.

Outro ponto interessante na releitura é perceber algumas “dicas” do futuro das personagens que eu tinha deixado completamente de lado, mas que mais para frente serão bem importantes, como Adele (a mãe de Pietro) e Bruno. Interessante também ver com outros olhos alguns pontos da narrativa. Ao conhecer o desfecho, o julgamento sobre determinadas personagens muda, até porque muda a Lenu que vai contando a história. O olhar da Lenu jovem para Nino é sofrido. O olhar de Lenu idosa (a que conta a história de moldura, aquela que quer se vingar do desaparecimento de Lila) para Nino é outro. É o tipo de situação que mostra como somos manipulados por narradores às vezes sem nem perceber.

Enfim, valeu a releitura? Ô, se valeu. Até porque eu nem tinha percebido como estava com saudades de Lila e Lenu até começar a releitura.

5 comentários em “História do Novo Sobrenome (Elena Ferrante)”

  1. Incrível como essa estória e capaz de te envolver, quase tive um ataque ao chegar na página 350 e ver que meu livro tinha uma falha de encadernação e faltavam 32 páginas, comecei uma escavação na rede até achar uma copia eletrônica, voei pelas páginas que faltavam no tablet e assim que deu voltei ao livro.
    Uma coisa interessante do livro em italiano e que ela apesar de constantemente falar sobre o uso do dialeto napolitano praticamente não usa nos livros, somente algumas poucas palavras são usadas e palavras que tem gráfia bem proxima da italiana, provavelmente deve ser uma decisão mercadologica.

    1. Lendo em italiano fica claro que o sentido é preservado em inglês, mas não a crueza das palavras, né? Se você pega dicionário de italino para inglês o vaffanculo é traduzido como fuck off, o negócio é que fuck off tem uma outra conotação em inglês. É vulgar também, é palavrão, mas é o tipo de palavrão que você ouve em um filme para adolescente, por exemplo.

      Curiosidade: quando a Lenu comenta sobre alguém usando o dialeto, até onde eu lembro ela narra que a pessoa falou usando o dialeto napolitano, mas não lembro de diálogo direto no livro. Tem diálogo direto em napolitano no original? Ou foi uma decisão dos tradutores deixar na narração?

  2. Vaffanculo é o nosso vai tomar no .., eles usam com mais frequencia do que nós, mas dependendo da entonaçao fica mais agressivo, quanto ao dialeto ela fala muito sobre ele, isso ajuda a caracterizar o nível socio-cultural do personagem, sendo politicamente incorreto, pobres sem educação usam dialeto, high class italiano, mas realmente no livro ela usa uma ou outra expressão mas que não é de difícil compreensão para quem não fala napoletano.

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