Em Sharp Objects Gillian Flynn nos apresenta Camille Preaker, uma jornalista de Chicago que recebe de seu editor a tarefa de voltar à cidade natal para investigar o que parece ser um caso de assassinatos em série. Ela segue para Wind Gap, uma cidadezinha no Missouri que não visitava há oito anos. Logo de cara ficamos sabendo que há algo de errado ali – não só pelo tempo em que a protagonista passa longe do local, mas do visível receio que ela tem de retornar, com todo um capítulo envolvendo muita bebida como parte da preparação para finalmente encarar a mãe e toda a cidade. Como de costume, Flynn não tem pressa em construir as personagens e desenvolver a ambientação, são pequenas informações deixadas como migalhas de pão junto ao que imaginamos ser a linha narrativa principal, a investigação de Camille sobre a morte das duas meninas.
Ao contrário dos seus outros dois livros, aqui Flynn não mexe tanto com a estrutura, é um romance linear comum, com um enredo até bem comum (para não dizer previsível). O relato de Camille descrevendo suas dificuldades para conseguir entrevistar os habitantes da cidade, por exemplo, estão bem dentro do esperado. Sabe como é: a velha história da cidadezinha com um segredo. O engraçado é que essa parte toda do mistério em si é tão familiar que embora Camille falassem em suor, vestidos e outros elementos típicos de um tempo quente, eu ficava imaginando aqueles lugares frios no estilo Arquivo X (com Mulder e Scully constantemente usando sobretudo e andando por lugares tomados por neblina). Chega um momento em que Camille fale “That’s Wind Gap. We all know each other’s secrets. And we all use them” e você consegue imaginar uma centena de nomes de cidades da literatura para colocar ali no lugar de Wind Gap.
Mas aí a relação de Camille com sua família começa a ganhar espaço. Ficamos sabendo que ela teve uma irmã, Marian, que falece ainda na infância. Fica a sensação inicial de que o problema entre Camille e sua mãe Adora é que ambas nunca superaram a perda de Marian, o problema é que aos poucos vamos percebendo que não é bem por aí. Adora casou novamente (com um homem completamente apático chamado Alan) e juntos tiveram uma filha chamada Amma, adolescente de 13 anos que Camille mal chegou a conhecer. Ou melhor, adolescente insuportável de 13 anos que Camille mal chegou a conhecer. Não dá para gostar de Amma, simplesmente não dá. Tá indo com a Briony para a galeria de personagens irritantes da literatura (dê um olá para Briony, Amma!). Pense em Mean Girls e multiplique por mil, com alguns pontos extras ao pensar “caramba, ela só tem treze anos”. O modo como ela manipula a todos ao redor, e como está consciente dessa manipulação é assustador.
Só que é óbvio que ela não seria assim não fosse o modo como Adora lida com a menina. Se você acha Amma insuportável, pense em uma mamãezinha que diz para a filha coisas como “I think I finally realized why I don’t love you“. Adora é assim. Uma frieza desconcertante voltada à Camille, um amor meio estranho voltado à Amma. A interação entre as três me parece bem representada em um momento em que Amma está no colo da mãe, que diz para Camille “You need to make her feel more comfortable around you, Camille; she is just a little girl” enquanto a narradora sabia que a irmã estava mal porque tinha enchido a cara em uma festa um dia antes. É tão torto e tão injusto que você quer simplesmente poder tirar Camille daquele lugar e…
… ah, é, Camille também não é perfeita. Protagonista típica de Gillian Flynn, lembra? Como ela é narradora, sabemos pouco sobre seu passado, mas o pouco que ela deixa passar já dá para ter alguma ideia. Ela era a garota mais linda da escola, e uma mean girl também (embora em escala menor). O modo como era tratada em casa acabou se refletindo em abuso de álcool, de sexo (ainda na adolescência) e também a transformam em uma “cutter” (automutiladora). O transtorno de Camille se revela um tanto peculiar: não bastava se cortar, ela escrevia palavras pelo corpo. WHORE, ICEBOX, BABYDOLL. Suas cicatrizes formam palavras que parecem arder a todo momento que ela sente algo relacionado ao que está escrito em seu corpo. Em determinados momentos ela diz que sentia uma palavra queimando em seus quadris, por exemplo, palavra que descrevia exatamente o que ela sentia naquela hora. É algo perturbador, especialmente se for imaginar um corpo inteiro coberto de cicatrizes-palavras (ou só palavras, já que ela mantém o hábito de escrever no corpo, só que com caneta).
Considerando isso você ainda acha que o crime é o mais importante do livro? Eu vejo a investigação sobre os assassinatos das meninas como um ponto de partida para uma investigação de Camille sobre si mesma. Sem retornar para Wind Gap, ela não teria que enfrentar antigos fantasmas que pensou ter deixado para trás. É a busca para entender o que fez dela o que ela é que forma o corpo principal da história, ou ainda, o paralelo que se traça entre os objetos pontiagudos que ela usa para se machucar fisicamente e como sua própria família a machuca psicologicamente
E o legal de Sharp Objects é que mesmo assim o mistério também é legal de acompanhar. Passada a frustração inicial de ter poucas informações sobre os crimes, no momento em que as peças começam a se encaixar a tensão dispara e aí você entra no já conhecido modo de leitura de livros da Gillian Flynn que é de só largar quando acabar. Como disse antes, há uma visível simplicidade na estrutura – especialmente se comparar com Garota Exemplar, o que dá toda a pinta de debut novel. Mas o legal é que essa simplicidade não significa baixa qualidade, e Sharp Objects é um daqueles casos de livros que mexem com o leitor ao ponto de você ainda pensar sobre ele mesmo depois de terminar a leitura.
ATUALIZADO DIA 05/01/2015: Para quem chegou aqui agora procurando informações sobre edição nacional, a Intrínseca está (finalmente) lançando o livro como Objetos Cortantes no começo de fevereiro.
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